Pelé em 2014.Crédito...Luiz Maximiano |
O Rei Pelé.
José Miguel Wisnik
O Sr. Wisnik é um compositor e escritor brasileiro que cresceu assistindo Pelé.
SÃO PAULO, Brasil – Pelé confessou certa vez que há muito tempo vinha sendo atormentado por um enigma, que só seria capaz de desvendar quando encontrasse Deus face a face e pudesse exigir uma explicação.
O que o atormentava era um sentimento de dupla identidade: havia “Pelé”, a maior lenda viva do esporte no século 20, mas também “Edson Arantes do Nascimento”, o cara comum cujo trabalho era zelar por Pelé, peso de sua existência quase sobrenatural. Pelé, que faleceu na quinta-feira aos 82 anos, sentiu, talvez com algum humor, que merecia algum tipo de resposta sobre por que recebeu esse duplo destino, mantendo um status divino aos olhos do mundo, mas ainda assim sentindo-se muito humano. Em sua morte, ele se perguntou, quem morreria, visto que tanto o semideus encarnado quanto a mais simples das criaturas coexistiam dentro dele?
Quem o viu jogar não tem dúvidas de que Deus realmente lhe devia uma explicação. Pelé, a mais consumada e luminosa figura de perfeição que já existiu em um campo de futebol, alcançou a fama ainda muito jovem, inconsciente no início de sua própria excepcionalidade. Segundo ele, seu objetivo mais pessoal era alcançar a grandeza não realizada que vislumbrou em seu pai, que foi um jogador admirável, mas obscuro, para resgatá-lo de uma carreira fracassada no futebol. Antes que ele percebesse, ele era o maior ídolo do esporte mais popular do planeta, fazendo sua chegada estrondosa na Copa do Mundo de 1958, aos 17 anos.
Tudo isso pertence a uma era passada de inocência esportiva. Os jogos de futebol eram transmitidos pelo rádio, transformando-os imediatamente em narrativas orais, impregnadas de lendas e mitos. A carreira de Pelé baseou-se primeiro no rádio e depois na televisão, consolidando sua fama lá em 1970, quando a seleção brasileira conquistou o tricampeonato mundial do país. Não há registro visual de grande parte de sua carreira, incluindo alguns de seus maiores gols. Mas, ao longo da década de 1960, Pelé foi unanimemente conhecido como o Rei do Futebol, reforçando sua majestade com a nobreza natural de quem entendia o valor de sua celebridade para cada camponês com quem se identificava.
Pelé marcando na final da Copa do Mundo de 1958.Crédito...Associated Press |
Pelé jogando pelo Brasil em 1968.Crédito...Associated Press |
Ninguém mais combinou sua velocidade e habilidade no drible, a habilidade de chutar com os dois pés, seu jogo aéreo e terrestre preciso e devastador, um senso mágico de timing com a bola, uma compreensão instantânea do que estava acontecendo ao seu redor, tudo baseado em um atletismo robusto e rigorosamente equilibrado. Mesmo assim, o efeito Pelé não é apenas uma soma, por mais única que seja, de habilidades quantificáveis.
Um poeta comentou certa vez que Pelé parecia arrastar o campo consigo em direção ao gol adversário, como uma extensão de sua própria pele. Um filósofo admitiu, brincando, a possibilidade de vislumbrar lampejos do Absoluto nele. A beleza e a inteligência de seu corpo em ação, somadas ao seu olho de águia e à imprevisibilidade de seus truques, faziam Pelé parecer estar operando em uma frequência diferente dos demais jogadores, assistindo em câmera lenta o mesmo jogo do qual participava em alta velocidade. , enquanto outros ao seu redor pareciam estar fazendo o contrário.
O fenômeno foi rapidamente descoberto e adotado em todos os continentes, muito antes da introdução de campanhas de marketing em larga escala. É porque sua existência se conecta com o mundo através de um alinhamento simbólico de natureza diferente. Além de ser reconhecido e reverenciado nos círculos tradicionais do futebol europeu, este afável negro, embaixador de um país periférico e atuante em uma linguagem não verbal, foi percebido, celebrado e amado nos mais diversos cantos do mundo como a eloquente afirmação de um grandeza maior do que qualquer supremacia política e econômica.
No Brasil, a chegada de Pelé ao cenário mundial coincidiu com a da nova capital do país, Brasília, fundada em 1960, com sua arquitetura inovadora e o sucesso da bossa nova. Já se disse que um gol de Pelé, uma curva de Oscar Niemeyer ou uma música de Tom Jobim cantada por João Gilberto eram como uma “promessa de alegria” de um exótico país marginal que parecia oferecer ao mundo uma passagem suave, embora profunda, do popular vernáculo à arte moderna, sem os custos da Revolução Industrial. A ditadura que se seguiu, a partir de 1964, deu sinais, recorrentes e persistindo até hoje, de que esse caminho não foi tão direto nem tão simples, para dizer o mínimo.
Pelé jogando pelo Brasil em 1968.Crédito...Associated Press |
Comportando-se de acordo com os ditames da tradicional sociabilidade cordial brasileira, mascarando o insidioso racismo estrutural e a desigualdade social, Pelé não adotou a rebeldia arrogante de Muhammad Ali, nem os apaixonados ziguezagues políticos do argentino Diego Maradona, nem seguiu o estilo carnavalesco e o arco trágico de Garrincha, a outra grande estrela brasileira de sua geração. Em vez disso, ele permaneceu uma testemunha tácita e grandiosa da negritude em ação.
Mais dionisíaco, politizado e mercurial que Pelé, Maradona nunca deixou de ser Maradona, à custa de ser consumido pelas chamas da sua glória e da sua queda. Ao dispensar o questionamento de Deus, Maradona tornou-se Deus e seus próprios demônios contorcidos. Garrincha e Maradona subiram e desceram sem nunca conseguir se separar da experiência.
Pelé, entretanto, tinha Edson. Entre os gênios de nosso tempo, ele é resguardado por seu duplo, que assume em menor escala as contingências da vida e os dramas pessoais. Mesmo que as gerações mais jovens nunca tenham tido a chance de enfrentar sua aparência magnífica e indescritível em campo, graças ao seu anjo da guarda, Pelé é poupado da ruína, permanecendo imortal em vida.
Talvez Deus, se Ele existir, revele isso a ele.
Original: https://www.nytimes.com
Tradução: https://vega-conhecimentos.com