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Veronica O’Keane: “De certa forma, toda a nossa memória é falsa”

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A psiquiatra e professora do Trinity College, em Dublin, analisa como o corpo é receptor de sensações e como essas sensações criam as recordações

RAFA DE MIGUEL 04 SET 2021 - 15:38 BRT
Veronica O’Keane fotografada em Dublin em julho.DEIRDRE BRENNAN

As recordações humanas são algo muito vivo e são forjadas no momento presente. Não são uma memória fixa que o cérebro se limita a conservar em seus arquivos para quando for necessário acessá-los. Veronica O’Keane chegou a essa conclusão, que transformou tudo o que havia aprendido em anos de estudos de psiquiatria, medicina e neurologia, depois de uma intensa conversa com uma de suas pacientes. Vítima de psicose pós-parto, a paciente esteve convencida durante algum tempo de que seu recém-nascido havia morrido. Pela janela do carro que a levava para uma instituição de saúde mental, onde ficou internada durante algumas semanas, pôde ver inclusive o túmulo do bebê em um cemitério. Superado o transtorno, e consciente de que nada do que imaginara havia sido real, voltou a ver um dia a lápide e uma sensação de terror a invadiu: “As lembranças continuavam sendo reais”. Em seu livro El Bazar de la Memoria: Cómo Construimos los Recuerdos y Cómo los Recuerdos nos Construyen (Siruela) —ainda sem edição em português—, essa professora de Psiquiatria do Trinity College, em Dublin, descreve com elegância pedagógica como o corpo é receptor das sensações, como as sensações criam a memória e como a memória define as pessoas.


Pergunta. Como foi esse processo pelo qual a história de sua paciente, Edith, a levou a repensar suas ideias sobre as lembranças?

Resposta. Eu tinha uma ideia bem estabelecida, aquela que nos ensinam em medicina, psiquiatria e neurologia, de que a memória era algo como um armazém permanente ao qual você vai quando quer se lembrar de algo ou figurar algo. Mas percebi que a memória é algo que se forja no momento presente, porque a única maneira de se ter a experiência de um determinado momento é através da memória, por meio de um processo de conexões que dão sentido a esse momento. As sensações chegam ao seu corpo constantemente e você dá sentido a essas sensações por meio da memória. Ou seja, a memória é algo que, basicamente, vive no momento presente. Foi isso que Edith me ensinou, que a memória é algo muito vivo, é o que somos.

P. A senhora é muito crítica em relação à ideia tão generalizada de que existe um dualismo corpo- mente.

R. A ideia de que as pessoas são algo diferente de seus próprios corpos, que o ser humano pensante é diferente do ser humano que sente, é um erro completo. Como o próprio conceito de que os homens e as mulheres são diferentes. A filosofia foi dominada durante séculos pelo conceito de que os homens são os que pensam e as mulheres as que sentem. Tudo isso começou a se desintegrar com a chegada do Iluminismo e dos direitos humanos. É a chegada do humanismo que começa a demolir essa concepção sexista. O reconhecimento de que mente e corpo agem juntos, embora o façam de maneira diferente, é fundamental não apenas para entender a biologia, mas para entendermos a nós mesmos como animais humanos.

P. É fascinante como a senhora usa as grandes obras da literatura em seu livro para explicar o funcionamento do cérebro.

R. Todos esses autores dedicaram suas vidas a um processo de introspecção. A intensidade com que alcançaram o fundo de sua própria consciência, pela via literária e seus processos de pensamento e sentimento, ultrapassa minha capacidade de imaginar sequer como chegaram a essas conquistas. Eram seres humanos altamente desenvolvidos. Pense em Samuel Beckett, capaz de criar um mundo em que não há âncoras, em que não há tempo, espaço e às vezes nem sequer há pessoa. Essas são precisamente as âncoras por meio das quais a memória é construída, em um nível celular do cérebro. Beckett se livrou delas. Foi capaz de eliminar esses elementos para demonstrar a matéria-prima de que somos feitos, por baixo de todas as estruturas que usamos para dar sentido ao mundo.

P. Pode-se concluir que os grandes autores não eram normais, no que diz respeito ao funcionamento de seus cérebros.

R. Veja o caso de Virgina Woolf, que sofria de um transtorno psicótico. Às vezes, durante suas fases de doença, o que percebia ao seu redor e como o integrava em seu cérebro era um processo não normal. Aprendemos o que é uma percepção normal, porque, no caso dela, era algo que se rompeu. Tinha um talento extraordinário para descrever sua própria introspecção. Essa ruptura acaba sendo muito esclarecedora sobre o que acontece em circunstâncias normais. Os romances de Dostoiévski, por exemplo, revelam para mim um autor com transtorno maníaco. Não sei exatamente qual era seu diagnóstico, mas tinha períodos de perceptibilidade extrema em que se descobre uma fase de emoção pura. Cervantes era uma pessoa normal? Não acredito.

P. Pode-se pensar que a memória é algo muito individual, mas, no entanto, a senhora defende o peso da memória coletiva.

R. Você não pode separar seu cérebro das influências culturais, familiares ou sociais que o rodeiam. Fui criada na Irlanda em um ambiente rígido dominado pelo dogma católico. Rompi com isso quando era muito jovem. Mas essa influência cultural permaneceu em mim e tenho certeza de que estruturou muitas das minhas crenças. E mesmo que você perca essas crenças, as estruturas que elas criaram em seu cérebro permanecem. O conhecimento é formado por meio de camadas anteriores de conhecimento prévio, e estaremos sempre revisando o passado em nosso processo de memória.

P. É normal, até saudável, a senhora defende, mentir a nós mesmos e criar falsas lembranças.

R. Somos humanos e temos necessidade de nos sentirmos bem. Um dos aspectos mais interessantes da depressão é que aqueles que sofrem dela não costumam enganar a si mesmos. Observam a si mesmos de uma forma muito crua, que poderíamos considerar negativa. Mas é ao mesmo tempo uma análise muito honesta do mundo e da condição humana. A psiquiatria tem muito a nos ensinar sobre a necessidade que temos de virar a página. E é algo saudável. O que veio a ser chamado de “psicologia positiva” tem como objetivo encorajar os pacientes, dar-lhes um impulso de otimismo, fazer com que se sintam confortáveis. No entanto, acredito que também é bom se sentir desconfortável. Faz parte da natureza humana a necessidade de fazer frente aos próprios demônios. De certa forma, toda memória é falsa.




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