Friné: o dramático julgamento da cortesã da Grécia Antiga que se despiu para salvar a própria vida.
Dalia Ventura
BBC News Mundo.
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'Friné em frente ao Areóago', de Jean-Léon Gerôme, foi uma das muitas obras de arte inspiradas na história
As coisas não iam bem para a defesa no Areópago, lugar onde, segundo a lenda, Ares, o deus da guerra, havia sido julgado pelos deuses e condenado por matar Halirrotio, filho de Poseidon, que havia estuprado uma de suas filhas, Alcipe.
No tribunal, localizado a poucos metros da Acrópole, em Atenas, a ré enfrentava, uma das mais graves acusações que poderiam ser feitas contra qualquer pessoa: impiedade, ou desrespeito a condutas ou crenças religiosas, uma das razões pelas quais o grande filósofo ateniense Sócrates havia sido condenado à morte.
Mesmo com sua preparação e esforço, era óbvio que o talentoso Hiperides, um dos dez oradores áticos (eram uma espécie de advogados da Antiguidade clássica), não estava conseguindo convencer o júri.
Com a vida de sua cliente (e sua própria reputação) em jogo, ele tomou medidas extremas.
"...como ela não estava conseguindo nada com seu discurso e era provável que os juízes a condenassem, após conduzi-la a um lugar bem visível e rasgar sua túnica, deixando o peito à mostra, declamou suas lamentações finais diante da visão oferecida por ela...", conta o escritor Ateneu de Náucratis em Banquete dos Eruditos.
Hiperides havia despido diante do júri, naquele lugar sagrado que havia sido regado com água limpa antes do julgamento para lembrar aos presentes que tudo que ali entrasse deveria ser puro, uma hetaira.
As hetairas eram uma classe de cortesãs profissionais da Grécia Antiga que, além de cuidar de sua beleza física, cultivavam suas mentes e talentos em um grau muito mais alto do que era permitido à mulher comum.
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O pintor francês Gustave Boulanger foi outro que foi seduzido pela beleza de Friné
Seu nome era Mnēsarétē, que significa "celebrando a virtude", mas era conhecida como Friné, que significa "sapo" e parece um insulto, mas o apelido não se devia às suas feições, mas sim à cor azeitona de sua pele.
Ela nasceu em 371 a.C. em Thespiae, mas se mudou para Atenas e, com o tempo, tornou-se uma celebridade que se escondia da vista do público com um véu.
"Friné era uma mulher muito bonita, mesmo nas partes de sua pessoa que geralmente não eram vistas; não era fácil vê-la nua, porque ela usava uma túnica que cobria toda a sua pessoa e nunca usava os banheiros públicos", escreveu Ateneu.
Assim, apenas aqueles que pagavam podiam vê-la... em carne e osso.
Quem não podia se dar ao luxo disso, tinha a oportunidade de admirar seus atributos de outro jeito: pelo fato de ela ter sido uma modelo bastante procurada por pintores e escultores, entre eles Praxíteles, o mais renomado escultor do século 4 a.C. e que a imortalizou em uma das mais famosas obras de arte da Grécia Antiga.
As Afrodites.
O enciclopedista romano Plínio, o Velho, conta que por volta de 330 a.C., a ilha grega de Kos encarregou Praxíteles de fazer uma estátua da deusa do amor, da beleza, do prazer, da paixão e da procriação.
Os residentes de Kos ficaram horrorizados ao ver a segunda escultura, então mantiveram a primeira. Mas seus vizinhos em Cnido não eram tão recatados e ficaram com a deusa despida.
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A estátua de Afrodite nua original se perdeu, mas ainda existem cópias
O historiador romano diz que o rei Nicomedes gostou tanto da escultura nua de Praxíteles que ofereceu a Cnido, em troca, o perdão de suas dívidas.
Embora os cnidianos tivessem recusado a oferta, eles conseguiram pagar o que deviam graças ao fato da Afrodite nua ter se tornado um ímã turístico.
A figura reproduzida em pedra também enriqueceu a mulher que a possuía.
As paredes de Tebas.
Além de seus atributos físicos, Friné era "uma deusa dos trocadilhos e do pensamento prático", de acordo com Ateneu, que também registrou que ela foi possivelmente a mais rica mulher criadora de seu próprio sucesso de seu tempo.
Ela acumulou tanta riqueza que se ofereceu para financiar a reconstrução das muralhas de Tebas, destruídas por Alexandre, o Grande, em 336 a.C..
Mas exigiu que as palavras "Destruída por Alexandre, restaurada por Friné, a cortesã" fossem inscritas nas paredes.
A ideia de uma mulher (e acima de tudo uma cortesã) reconstruir o que Alexandre, o Grande, havia destruído, era tão perturbadora para os patriarcas da cidade que preferiram manter as ruínas.
E o julgamento?.
Hipérides despiu Friné na frente do júri.
A cortesã estava lá porque, como disse Ateneu, "durante as festividades Eleusinas e as de Poseidon, à vista de todos, ela tirava sua túnica, soltava os cabelos e entrava no mar".
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Os Mistérios de Elêusis eram o mais famoso dos ritos religiosos secretos da Grécia antiga, e foi assim que o pintor polonês do século 19 imaginou Friné durante o festival.
A acusavam de profanar a festa com sua oferenda, e Hipérides mostrava como ela cometera o crime.
Era um corpo tão perfeito que só poderia ser feito pelos deuses, ele argumentou. Seria desrespeitoso para eles privar o mundo dessa obra divina.
Como eles poderiam condenar uma mulher que era tão bonita que havia representado Afrodite?
"...e fez com que os juízes sentissem um respeito reverente pela ministra e serva de Afrodite, garantindo por devoção religiosa que ela não deveria ser morta", escreveu Ateneu.
A verdade é que a história do julgamento de Friné foi recriada com base em poucas passagens de escritos da época e relatos de autores que não estiverem presentes.
Sabe-se que o julgamento ocorreu e que o discurso de Hipérides em sua defesa foi um dos mais admirados da Antiguidade, mas dele restam apenas alguns fragmentos.
Há também dúvidas sobre a causa que levara à acusação, e há uma outra versão do final, em que a própria Friné, vestida, fala com cada um dos jurados e os convence de sua inocência.
Nada disso impediu que o dramático litígio inspirasse várias obras de arte, desde pinturas como as que ilustram esta reportagem e várias outras, até esculturas de artistas como o americano Albert Weine.
Poetas como Charles Baudelaire, Francisco de Quevedo e Rainer Maria Rilke escreveram pensando em Friné, o francês Camille Saint-Saëns criou uma ópera que leva seu nome, e o italiano Mario Bonnard dirigiu um filme sobre a cortesã.