Graças ao Freedom of Information Act, a inspiração da lei de acesso à informação brasileira, a agência americana disponibilizou as artes e as regras de alguns diversos jogos de criados dentro da agência e, para minha surpresa, vários eram jogos de tabuleiro. Não estou falando de jogos comerciais usados para um treinamento qualquer, mas de elaborados jogos projetados e montados por oficiais de inteligência para refletir a realidade das operações da maior agências de espionagem do mundo.
Segundo o analista sênior David Clopper, em 2008 ele foi chamado por seus chefes na CIA para desenvolver novos exercícios de treinamento interno. Até então os exercícios envolviam o normal de treinamento corporativo: grupos, powerpoint, briefings e outras coisas “incrivelmente chatas” na opinião do analista. Mas Clopper já estava na agência a tempo o suficiente para mudar esses exercícios. Seu chefe que também era um jogador, um gamer, que gostava de videogames, jogo de tabuleiro etc. e perguntou se ele poderia usar jogos para ensinar. Quatro anos de trabalho depois, Clopper apresentou 3 jogos de tabuleiro para treinamento da CIA em um evento de jogos, os mesmos que estão disponíveis agora por força de lei.
Os jogos.
Collection.
Apesar do título pouco atrativo, Collection pode ser comparado ao Pandemic. Em Collection um grupo de jogadores deve trabalhar em conjunto para resolver três grandes crises ao redor do globo. O objetivo dos jogadores, cada um representando um tipo diferente de especialista, é coletar informações relevantes para resolver todas as três crises. Os jogadores perdem se qualquer uma das crises estourar, como medido por 3 diferentes placares. Cada partida deve ter, no mínimo, 3 jogadores para cumprir os seguintes papéis de analista: político, militar e econômico. Cada um pode coletar informações apenas em seus campos de conhecimento, enquanto outros jogadores, até sete por equipe, tem suas próprias especialidades. Suponho que dentre os objetivos constem a integração de equipes multidisciplinares e desenvolvimento de habilidades básicas de análise de dados, especialmente em como conectar informações de diferentes campos de conhecimento para auxiliar a tomada de decisão.
Dentre as dificuldades do jogo está o baixo número de ações que cada jogador pode fazer por por turno, apenas duas, e como os medidores de crise podem piorar rapidamente. As ações possíveis variam entre mover-se pelo planeta, promover novos relacionamentos na localização atual (networking ou recrutamento de agentes) ou tentar adquirir informações . Essa última ação é uma rolagem de dados que será influenciada pelo networking do jogador, outros agentes na mesma região e uso de cartas-bônus. Segundo o autor, os bônus não foram planejados para oferecer um jogo justo ou equilibrado. Esse parece ser um jogo projetado para ser difícil, para ensinar os participantes a superar adversidades. O que me parece bem de acordo com a idéia de um jogo de treinamento.
Segundo Clopper, na partidas em que os jogadores trabalham juntos e pensam de forma estratégica a chance de vitória é maior. Por outro lado, nas partidas em que alguém trabalha isolado ou demora demais para colaborar as crises estouram rapidamente. O que provavelmente obriga o grupo a mudar de comportamento ao longo do jogo. Já observei algo semelhante nas minhas experiências com o projeto.
Collection Deck.
Esse já é um game competitivo, mais focado no processo de coleta de de informação. É um jogo de cartas como Magic: The Gathering. Vários jogadores trabalhando juntos para resolver problemas de inteligência enquanto lidam com circunstâncias repentinas, as reality checks, cartas-problema que um jogador pode usar contra outro. Por exemplo, um jogador pode usar uma carta que representa um satélite espião, com o qual deseja obter informações, enquanto outro jogador pode usar a carta “falha do satélite” para impedir o primeiro.
O jogo foi projetado para dar contexto sobre métodos de coleta de informações ao mesmo tempo que ajuda os jogadores a entender como problemas reais e repentinos podem aparecer em seu caminho. Segundo Clopper, alguns jogadores chegaram a dizer que durante a partida tiveram insights úteis para operações reais.
Construção de Satélites.
Clopper tem um projeto não finalizado chamado Satellite Construction Kit: um jogo de gerenciamento de recursos onde eles devem trabalhar para manter uma rede de satélites funcionando, mesmo que tenham que lidar com desafios como atender demandas do Departamento de Defesa enquanto o congresso arbitrariamente corta o orçamento. Algo que não é incomum para qualquer funcionário público, mesmo que não seja espião.
Kignpin: a caçada a um megatraficante.
Esse foi desenvolvido pelo profissional de treinamento em inteligência Volko Ruhnke. Além de funcionário da CIA ele também designer com jogos publicados comercialmente, ganhando até alguns prêmios. Kingpin é um jogo feito em colaboração com a Defense Intelligence Agency (Agência de Inteligência em Defesa) com o objetivo de treinar analistas para o trabalho com polícias e outros parceiros para encontrar um bandido bem armado e protegido. Um jogo sobre encontrar um perigoso fugitivo da justiça.
É um jogo para dois times, um grupo atuando como investigadores tentando localizar o poderoso traficante mexicano “El Chapo” e outro atuando como os traficantes, justamente para fazer os analistas entenderem como seus alvos pensam e trabalham. Além de fornecer uma oposição tão criativa e flexível como só outras pessoas podem ser.
Por que jogos?
Como Ruhnke observa, jogos são particularmente úteis para sintetizar um grande volume de dados e entender a complexidade dos problemas do mundo real. Eu adiciono a vantagem social que os jogos de tabuleiro tem sobre os jogos digitais. É possível ver em vários dos exemplos acima a importância da cooperação e como os jogos atuam para integrar equipes multidisciplinares. Na minha experiência pessoal, juntar gente com especialidades diferentes é meio caminho andado para conseguir um conflito paralisante se essa equipe não souber se entender.
Uma das vantagens do jogo é que ele simula situações reais. Quando as pessoas jogam estão tendo uma experiência com um sistema codificado em cartas dados e etc. que é um modelo da realidade. A aprendizagem é muito mais rápida porque os jogadores estão dentro do sistema, interagindo com ele e os outros jogadores. Algo que se aproxima muito da famosa construção conjunta do conhecimento que os teóricos da aprendizagem, como Vygotsky, tanto gostam. Algo que é turbinado no ambiente social cara-a-cara de um jogo de tabuleiro de uma forma que um jogador na internet não chega nem perto. Como observado por Ruhnke, se pensarmos num jogo como uma forma de criar uma história, os jogadores estão criando uma história enquanto jogam e histórias grudam na memória, as pessoas lembram das histórias que constroem. Uma emoção, como a sensação de perder ou ganhar cria âncoras muito mais fortes na memória que a simples exposição de conteúdo. E eu acredito que essa memorização é ainda mais forte quando o tema é ligado a um assunto dominado pelos jogadores. Nesse ambiente eles não estão jogando por diversão, mas com uma intenção de aprendizagem, uma abordagem mais profissional. Tanto que, em alguns casos, observou-se que jogadores pensaram em soluções aplicáveis a problemas reais, muito além do ambiente da partida.
E aqui podemos pensar em uma das diferenças entre os jogos de tabuleiro para treinamento os comerciais. Jogos comerciais geralmente tentam ser justos e equilibrados, para propiciar uma experiência de jogo agradável. O que explica o sucesso de mercado dos party games (jogos de festa) ou jogos casuais. No entanto, como dizem os militares: treinos difíceis se traduzem em combates fáceis. Jogos, como esses da CIA demonstram, tentam simular a realidade e a diversão e o desafio típicos dos jogos são meios para se cumprir os objetivos de aprendizagem e não um fim em si mesmos.
Um exemplo citado pela Chief Strategy Officer Rachel Grunspan: Um jogo sobre gerenciamento incluía um grande mapa global digital operado por toque, suponho que algo como uma tela de tablet gigante. O jogo tinha duas equipes competindo: o time azul que representava a CIA; e o vermelho a oposição escolha seu bandido preferido. O jogo requeria um técnico de Tecnologia da Informação (TI) para apoiar os dois times e garantir o funcionamento da tela e de outros sistemas do jogo. Imagino que era algo como um jogo de tabuleiro digital. Em uma partida o time azul venceu de lavada, o que era um resultado pouco usual considerando que o jogo havia sido desenhado para dar vantagem ao time vermelho, reflexo dos objetivos de treinamento do jogo.
A análise pós-partida não mostrou detalhes muito interessantes até que um comentário desavisado do técnico de TI mostrou aos coordenadores do treinamento o que realmente havia acontecido. Os membros do time azul haviam usado o técnico de TI para espionar o time vermelho, mas fizeram isso de uma forma que o próprio técnico não notou que estava ajudando eles e ainda prepararam os relatórios pós-partida para esconder esse detalhe. Os coordenadores riram, foi uma idéia inusitada e ainda assim útil. O caso mostrou como certos jogos podem ensinar mais do que os próprios designers de jogo esperavam.
“Esse é o comportamento humano real.” observou Grunspan. “Se você projetar o jogo direito vai ver muito complexidade emergir de forma espontânea. É isso que queremos.”
Conclusão.
Assim, a CIA mostra como o aprendizagem baseada em jogos, representada pelos jogos de tabuleiro, pode ser útil para uma organização grande, antiga e provavelmente cheia de regras sérias. Algo que sugeri no meu Documento 305 e que, espero, seja replicado por outras organizações no futuro.
Referências:
The CIA uses board games to train officers—and I got to play them – Sam Machkovech
CIA’s in-house board games can now be yours thanks to FOIA request – Sam Machkovech
Fonte: https://teclogos.wordpress.com