O mistério do “eu”: o que é a consciência?
Nesta quarentena, você
provavelmente conheceu melhor uma pessoa que vive dentro da sua cabeça, aquela
que você apelidou de "eu". Mas quem é ela, afinal? Porque ela existe?
Bem vindo ao enigma da consciência.
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Em um vídeo gravado em
2008, um homem de 50 anos conhecido pelas iniciais TN está caminhando em um
corredor. Há uma porção de objetos que cientistas espalharam pelo chão: uma
lata de lixo, um tripé de câmera, um maço de papel sulfite. Lawrence Weiskrantz,
neurocientista da Universidade de Oxford, quer testar se TN é capaz percorrer
alguns metros sem tropeçar. TN cumpre a tarefa, se desviando habilmente dos
obstáculos. Normal, não fosse um detalhe: TN não “vê” nada. Ele é cego.
Em 2003, num intervalo
de 36 dias, TN teve dois derrames. Nos dois casos, os coágulos interromperam
circulação sanguínea na parte de trás do cérebro, onde fica o chamado córtex
visual. Sem fornecimento de oxigênio por alguns minutos, ou neurônios dessa
região morreram. O córtex visual, como o próprio nome diz, recebe e processa os
impulsos elétricos que chegam dos olhos. Sem eles, é impossível enxergar. Ou
deveria ser.
Quando Weiskrantz
perguntou a TN como ele era capaz de se esquivar dos objetos sem vê-los, ele
afirmou simplesmente não saber: mexia as pernas e braços por mero instinto.
Alguma área do cérebro de TN continua recebendo informações enviadas pelos
olhos e usando-as para guiá-lo – mas ele não tem acesso consciente às imagens.
Seu “eu” interior vê apenas escuridão.
Pensando bem, isso não
é tão estranho assim. Afinal, seu cérebro faz várias coisas sem te consultar –
ainda que ver não seja uma delas, normalmente. Ele mantém seu coração batendo,
comanda os movimentos peristálticos do sistema digestório e cuida até da sua respiração
– embora os pulmões possam sair do automático e passar para o controle manual
(como quando um médico pede para você respirar fundo). O que aconteceu com o
paciente TN, grosso modo, é que sua visão passou para esse plano secundário,
das coisas inconscientes.
CORPO E MENTE.
Existe alguém aí dentro
da sua cabeça. No caso, você. Você lembra de trechos de um filme, ou de sons de
uma canção, ou do cheiro de um perfume. Você realiza tarefas falando consigo
mesmo silenciosamente, sem que esse monólogo interior jamais saia pela boca.
Você decide quando vai mover as pernas e braços ou quando vai ficar parado.
Você, em resumo, é consciente.
Somos íntimos da
consciência. Mas tem um detalhe: não sabemos como nosso cérebro é capaz de
criá-la. Já em 1637, o filósofo René Descartes se preocupou com essa desconexão
aparente entre a mente (o que um religioso chamaria de alma) e o cérebro em si,
o órgão feito de carne que gera essa mente. Afinal, a nossa impressão intuitiva
é de que a tal alma vai para algum lugar após o cérebro morrer e se decompor –
como se ela ocupasse sua cabeça, mas pudesse se libertar dela. Esse é o
dualismo cartesiano.
O filósofo GIlbert Ryle
chama esse conceito de fantasma na máquina. Ou seja: se houvesse uma máquina
que fizesse a mesma coisa que faz o cérebro, e essa máquina fosse tão grande
que pudéssemos acessar o seu interior, nós encontraríamos só uma porção de
engrenagens e alavancas inanimadas. “Apenas peças funcionando com outras peças,
mas nada para explicar a percepção“, nas palavras do matemático alemão
Gottfried Leibniz. Onde, afinal, fica o fantasma?
Como impulsos elétricos
– que por si só não têm nada de consciente – dão origem à experiência subjetiva
da dor?
A questão é ele não
fica. Hoje, do ponto de vista estritamente científico, pode-se afirmar com
razoável segurança que a consciência é produto de interações eletroquímicas
entre os neurônios. Ela não pode ser encontrada entre as engrenagens, porque
ela é as engrenagens. A tal percepção a que Leibniz se refere nasce do próprio
funcionamento da máquina. Se o cérebro morre, você e tudo que você é morrem
junto.
A questão é outra: que
interações eletroquímicas são essas? Como esses impulsos elétricos – que por si
só não têm nada de conscientes – dão origem à experiência subjetiva da dor, da
alegria ou da cor verde? Se um dia decifrarmos esses pulsos elétricos, nós
vamos conseguir construir um robô capaz de ter experiências subjetivas?
Os cientistas e
filósofos de hoje não têm essas respostas, mas sistematizaram o problema de uma
maneira que se tornou possível abordá-lo com seriedade. Na década de 1990, a
consciência saiu do campo das coisas sobre as quais nós não sabemos como pensar
e se tornou alvo de investigação séria. O primeiro passo nessa direção foi dado
pelo filósofo David Chalmers no livro A Mente Consciente, de 1996. Ele afirma
que o problema da consciência pode ser subdivido em problemas menores, e que,
para algum deles, já temos respostas, ainda que rudimentares. Vamos começar
pelas respostas que estão encaminhadas.
OS PROBLEMAS
"FÁCEIS".
Você decide quando vai
mover as pernas e braços ou quando vai ficar parado. Você, em resumo, é
consciente.
Você decide quando vai
mover as pernas e braços ou quando vai ficar parado. Você, em resumo, é
consciente. Ilustração: Giovani Flores | Design: Juliana
Krauss/Superinteressante
1. Um aspecto
importante da consciência é o autoconhecimento. Você não é só um ser capaz de
ter dor de cabeça, você é um ser capaz de pensar “Eu, Bruno, repórter da SUPER,
estou com dor de cabeça”. Steven Pinker, cientista cognitivo de Harvard, não
considera essa capacidade um mistério: “Qualquer programador amador consegue
escrever um software que examina e modifica a si próprio, e que gera relatórios
sobre si mesmo”, ele escreve no livro Como a Mente Funciona. “Um robô que se
reconhece no espelho não é mais difícil de construir do que um robô que
reconhece qualquer outra coisa. Ou seja: a sensação de que existe um “eu” é um
problema de programação razoavelmente simples. Chimpanzés e golfinhos, como
nós, se reconhecem no espelho. Cães são ruins de espelho, mas sabem se o xixi
no poste é deles mesmos ou de outros cães.
2. Outra questão é a
imaginação. Temos a sensação de que existe uma tela no interior da nossa
cabeça, em que podemos criar situações de mentirinha. Não é difícil entender
por que esse software mental da imaginação evoluiu por seleção natural. Ele
aumenta nossas chances de sobreviver a situações adversas. Se um gato quer
subir em um armário, ele usa essa tela interior para treinar vários jeitos de dar um pulo tão
alto, averiguar qual é o melhor e só então utilizá-lo. O gato manipula um
armário fictício em seu teatro mental.
Já os teatros mentais
humanos são tão completos que contêm os próprios humanos que os criaram:
“Talvez a consciência surja no momento em que a simulação que o cérebro faz do
mundo se torna tão completa que passa a incluir um modelo de si mesma”, escreve
o biólogo Richard Dawkins.
3. Além do
autoconhecimento e da imaginação, há o acesso à informação. Como já mencionado,
sua consciência permite acessar algumas coisas que acontecem com o seu corpo –
como a visão –, mas não outras – como os batimentos cardíacos. Além disso, ela
organiza o acesso. Permite que você decida o que fará agora.
Em 1988, Bernard Baars
criou a hipótese do global workspace – o “espaço de trabalho global”. A ideia é
basicamente a seguinte: seu cérebro tem vários módulos, que funcionam todos ao
mesmo tempo. Há uma área que cuida do coração, outra do estômago, outra do
nariz, operando simultaneamente (Caso contrário, você teria que interromper
seus batimentos cardíacos para cheirar alguma coisa ou digerir. Não daria muito
certo.) Isso torna o cérebro uma máquina capaz de fazer algo que a ciência da
computação chama de processamento em paralelo.
Por outro lado, o seu
fluxo de consciência – essa sequência de sons, imagens, cheiros, palavras etc.
que passa pela sua cabeça constantemente – é oposto de paralelo. Ele é serial.
Ou seja: você só consegue dar atenção a uma coisa de cada vez, uma após a
outra. Quando você para e pensa em algo, você escolhe um tópico (digamos, o
preço da escola do seu filho) e dedica todos os recursos necessários a explorar
esse tópico. Você ativa a memória para relembrar as mensalidades antigas e o
aumento nos preços, ativa a linguagem para explicar o problema a um amigo e
pedir conselhos etc.
Ou seja: a consciência
permite controlar a ativação dos módulos do cérebro, que são paralelos, de
maneira serial. Ela é como a tela do seu computador: você pode até ter vários
programas rodando ao mesmo tempo, mas usa um de cada vez.
Talvez a consciência
surja no momento em que a simulação que o cérebro faz do mundo se torna tão
completa que passa a incluir um modelo de si mesma.
Richard Dawkins,
biólogo
Um experimento
realizado pela psicóloga Anne Treisman, de Princeton, demonstra que nós temos
um estágio de processamento paralelo inconsciente e um estágio de processamento
paralelo consciente. Ela mostra a uma cobaia uma folha de papel com um monte de
letras X e apenas uma letra O. A cobaia precisa identificar a letra O lá no
meio. Simples: a letra O é muito diferente da letra X, ela se destaca
imediatamente aos olhos. A mesma coisa acontece se a folha tem um monte de
letras X verdes e apenas uma letra X vermelha. Isso é processamento paralelo
inconsciente: os módulos do seu cérebro que reconhecem formas e cores rastreiam
a folha de papel e encontraram um item diferente sem você precisar prestar
atenção.
Agora, imagine que a
folha de papel tem letras X verdes e vermelhas e letras O verdes e vermelhas.
Ou seja: agora há quatro combinações possíveis: X vermelho, X verde, O
vermelho, O verde. Sua missão é identificar o X vermelho. Fica bem mais
complicado. O único jeito é ligar o processamento serial consciente, ou seja:
prestar atenção. Você para e pensa: “Vou olhar letra por letra, avaliando forma
e cor, até encontrar a combinação correta de forma e cor”. A consciência, em
suma, põe ordem na casa dos pensamentos. Permite abordar os problemas de
maneira sistemática.
Os três casos que você
acabou de ver ilustram algumas hipóteses sólidas sobre o funcionamento da
consciência. Mas elas, como dissemos antes, estão no rol dos “problemas
fáceis”. Falta explicar o que David Chalmers chamou de hard problem – o
“problema difícil”. Então vamos introduzir o hard problem de Chalmers com
morcegos, como fez o filósofo contemporâneo Thomas Nagel.
O PROBLEMA DIFÍCIL.
Um morcego tem uma
espécie de sexto sentido, a ecolocalização. Esse mamífero voador emite sons e
calcula a que distância que um objeto está pelo tempo que o som demora para
bater no objeto e voltar. Como será que é estar dentro da cabeça dele? Como é
ver o mundo usando o som, em vez da luz? Será que o morcego “vê” os sons?
Talvez, a representação mental gerada pela ecolocalização não se pareça nem com
a audição nem com a visão. Ela pode ser algo que sequer conseguimos imaginar,
pois não possuímos esse sentido.
Há muitas coisas
inacessíveis a um ser humano. Nunca saberemos qual é a cor de um raio
ultravioleta, porque nossos olhos só enxergam ondas eletromagnéticas (isto é,
de luz) até o violeta. A caixa de lápis de cor da natureza é bem maior. Cada lápis
corresponde a um comprimento de onda eletromagnética, mas só conseguimos
enxergar um pedaço da caixa. Da mesma forma, somos incapazes conceber um espaço
de quatro dimensões, porque vivemos num Universo limitado a três. Os filósofos
chamam essas sensações puras, que não podem ser descritas em termos de outras
coisas, de qualia. Explicar a existência dos qualia é o “problema difícil”.
Em princípio, nós
poderíamos ser todos zumbis, diz Chalmes. Não zumbis de Walking Dead. Zumbis
filosóficos. Vamos explicar esse conceito com o paciente TN, lá do começo do
texto. Ele não enxerga conscientemente, mas enxerga. Se você visse TN andar no
corredor sem saber que ele é cego, pensaria que ele tem uma visão normal. E ele
tem. O que ele não tem é a experiência subjetiva da visão.
Dá para imaginar uma
pessoa que seja como TN em todos os aspectos, não só a visão. Que não acessa
cheiros, sons, cores ou dores. E você não conseguiria perceber, porque essa
pessoa se comportaria normalmente. Ela teria autoconhecimento, imaginação e
acesso à informação. A única coisa que faltaria é o que falta a um computador:
a experiência subjetiva dessas coisas. Os tais qualia (o plural é quale). Falta
a pessoa saber qual é a aparência da cor vermelha, em vez de simplesmente
registrá-la como uma onda eletromagnética de um certo comprimento.
“Uma teoria satisfatória da consciência
precisa prever sob quais condições um sistema físico particular – sejam os
neurônios do seu cérebro, seja um chip de silício – está tendo experiências
subjetivas”, escreve Christof Koch, presidente do Instituto Allen para Ciências
do Cérebro. Caso contrário, será impossível criar uma inteligência artificial
consciente. Filósofos como Chalmers apostam nessa impossibilidade. Ele é um
dualista, como Descartes. Embora sua visão não seja religiosa, ele entende os
quale como algo desvinculado da biologia.
Entende a consciência
usando nosso cérebro é como tentar medir uma régua usando a própria régua.
Outros, como Daniel
Dennett, da Universidade Tufts, acreditam que na verdade não há um problema
difícil, e Chalmers precisa (com o perdão do trocadilho) colocar a mão na
consciência. Quando os cientistas conseguirem mapear toda a rede de interações
eletroquímicas entre os neurônios, os quale serão reduzidos a um fenômeno
biológico. Isso já aconteceu antes na história da ciência: para os alquimistas,
ouro era algo especial. Hoje, porém os químicos sabem que ouro e oxigênio são
feitos da mesma coisa, átomos. A diferença é que os átomos de outro tem 79
prótons, os de oxigênio, 8.
Há uma terceira classe
de pensadores, porém, cuja opinião é a de que entender os quale (ou
reproduzi-los em uma máquina) usando nosso cérebro é como tentar medir uma
régua usando a própria régua: algo impossível, além do nosso alcance. A
consciência até teria uma explicação perfeitamente lógica, mas que nossa mente
de Homo sapiens evoluído no leste da África não é capaz de captar. Exatamente
como a cor do infravermelho. Ou a quarta dimensão. Se for isso mesmo nós
seremos, para sempre, um mistério para nós mesmos.
Fim do artigo.
Texto: edição,
diagramação e direito autoral:
Áudio: gravação e
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