Os bastidores do Livro dos Espíritos.
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Saiba como um professor
de ciências investigou as mensagens dos espíritos para fundar uma religião na
Paris do século 19
Na sala principal de
uma mansão em Paris, um grupo de senhores elegantes observa em silêncio a
garota de 14 anos. Julie Baudin está sentada em frente a uma mesa redonda e
segura um estranho objeto – uma cesta com um lápis encaixado na borda, que
risca letras em espiral. Cada palavra é analisada atentamente por um dos
homens. A garota parece não saber por que os adultos olham para ela tão
concentrados – volta e meia ela ri e faz algum comentário engraçado. Suas mãos,
porém, desenham no papel frases que em poucos meses irão fundar uma religião: o
espiritismo.
Publicado pela primeira
vez em 1857, o Livro dos Espíritos foi organizado em cerca de 20 meses pelo
professor francês Allan Kardec, que coordenou longas reuniões com médiuns,
fazendo perguntas a eles e colhendo respostas que acreditava vir dos espíritos.
Dos vários médiuns que contribuíram para o livro, 3 garotas se destacam. Julie
e Caroline Baudin, de 15 e 18 anos, e Ruth Japhet, de 20. Organizando as
respostas para 501 perguntas sobre o Universo, Kardec criou a doutrina e visão
de mundo do espiritismo, fazendo dele muito mais que uma diversão da burguesia
parisiense.
Na época, os fenômenos
mediúnicos serviam como passatempo nos salões de Paris, que começava a ganhar
ares cosmopolitas. A partir de 1850, a cidade passou por uma grande reforma.
Ruelas medievais e casebres deram lugar a avenidas largas e bulevares que
convergiam no Arco do Triunfo, símbolo da força da modernidade e da nova
burguesia francesa. Com novos parques, a cidade se preparava para virar o
século como a Cidade das Luzes. Era tempo de revolução industrial e descobertas
científicas, que tornavam o homem capaz de explicar e interferir nos fenômenos
ao seu redor. Ou em quase todos.
Porque no meio de toda
essa modernidade, as mesas girantes eram uma febre que assolava a Paris de
1850. Eram comuns as reuniões em salões culturais ou mansões de senhoras da
sociedade, nos quais as pessoas iam para girar mesas apenas com o poder da
concentração. “Toda a Europa tem o espírito voltado para uma experiência que
consiste em fazer girar uma mesa”, afirmou o jornal L’Illustration do dia 14 de
maio de 1853. “Ide por aqui, ide por ali, nos grandes salões, nas mais humildes
mansardas, no atelier do pintor – e vereis pessoas gravemente assentadas em
torno de uma mesa vazia, que elas contemplam à semelhança daqueles crentes que
passam a vida a olhar seus umbigos.” Nas reuniões, havia poetas, intelectuais e
nobres. O poeta Victor Hugo era frequentador assíduo das reuniões e chegou a
escrever que “negar a atenção a que tem direito o espiritismo é desviar a
atenção da verdade”.
Numa noite de maio de
1855, a reunião das mesas girantes aconteceu na casa de uma senhora chamada
Plainemaison. Uma das pessoas que compareceu à reunião foi Hippolyte Léon
Denizard Rivail, um professor de ciências de 50 anos. Mais tarde, ele contaria
como a visita o deixou impressionado. As mesas, segundo ele, não só giravam
como batiam no chão e se moviam “em condições que não deixam margem a qualquer
dúvida”. A reunião na casa da sra. Plainemaison deixou Rivail aturdido.
“Entrevi naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles
fenômenos, qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova lei, que
tomei a mim investigar a fundo”, escreveria o professor, anos depois.
Começam as sessões
Rivail passou meses
observando o fenômeno naquela e em outras casas da cidade, como a dos Boudin,
que tinham duas filhas que acreditavam ser médiuns. O mais estarrecedor era que
as mesas pareciam não só rodar como também falar. Isso mesmo: pareciam indicar
letras com pancadas no chão e, quando interrogadas, moviam-se para a direita ou
esquerda, tentando comunicar “sim” ou “não”. “Se as pessoas viam o fenômeno
como uma diversão, Rivail ia às reuniões de mesas girantes como um cientista.
Fazia perguntas sérias e anotava as respostas que obtinha”, diz o médium e
jornalista Jorge Rizzini. Em abril de 1856, 11 meses depois da primeira visita
a uma daquelas reuniões, a mensagem da mesa perturbou ainda mais aquele
professor de ciências. Um espírito teria escolhido Rivail para reunir e
publicar os ensinamentos que ele obtinha nas mesas. Rivail não acreditou e
pediu que o espírito repetisse a mensagem. “Confirmo o que foi dito, mas recomendo
discrição, se quiser se sair bem. Tomará mais tarde conhecimento de coisas que
agora o surpreendem”, foi a mensagem que ele recebeu como resposta.
Assim o trabalho
começou. Todas as terças-feiras, Rivail freqüentava a casa da senhora Boudin.
Julie, a moça de 14 anos, e sua irmã Caroline, de 16, psicografaram quase todas
as questões do Livro dos Espíritos. Como a identidade das duas foi mantida em
segredo por muitos anos, sabe-se pouco sobre elas. O que se sabe é que Julie
era uma médium passiva, inconsciente do que escrevia. Somente achava divertido
as pessoas lhe darem tanta importância. As reuniões, dirigidas pelos pais
delas, não eram secretas, mas restritas a poucos convidados. Para escrever as
mensagens, Julie e Caroline usavam uma cesta-de-bico, feita de vime, com 15 a
20 centímetros de diâmetro e uma espécie de bico com um lápis na ponta. “Pondo
o médium os dedos na borda da cesta, o aparelho todo se agita e o lápis começa
a escrever”, contou Kardec em O Livro dos Médiuns. Com o tempo, as garotas passaram
a usar a psicografia direta, mesmo método usado mais tarde pelo brasileiro
Chico Xavier.
Diante delas, Rivail
fazia perguntas que nós, mortais, sempre quisemos fazer a quem passa pela morte
e volta para contar. A 4ª pergunta do Livro dos Espíritos, por exemplo, é
“Poderíamos dizer que Deus é infinito?” E a resposta: “Definição incompleta.
Pobreza da linguagem dos homens, insuficiente para definir coisas acima de sua
inteligência”. A 150ª é “A alma, após a morte, conserva sua individualidade?
Sim, nunca a perde. O que seria ela se não a conservasse?”
As respostas que
Caroline e Julie psicografavam eram revistas, analisadas e muitas vezes
comparadas a outras mensagens. Na fase de revisão, a médium que mais contribuiu
foi Ruth Japhet, uma médium sonâmbula que tinha mais de 50 cadernos com
mensagens que psicografava à noite. Para Rivail, a revisão era necessária,
primeiro, por causa da dificuldade em se entender o que os espíritos diziam.
Segundo, porque, para ele, os espíritos não eram donos de toda a sabedoria do
Universo. “Um dos primeiros resultados das minhas observações foi que os
espíritos, não sendo senão as almas dos homens, não tinham nem a soberana
sabedoria nem a soberana ciência; que seu saber era limitado ao grau de
adiantamento; e que a opinião deles não tinha senão o valor de uma opinião
pessoal”, escreveu ele em O Livro dos Médiuns. Por isso, Kardec afirmava que
muitas mensagens de entidades eram ignoradas, ou por terem gracejos ofensivos
ou por não fazerem sentido. Também por esse motivo, quanto mais médiuns
participassem da composição do livro, melhor. Segundo ele, mais de 10 deles
contribuíram na 1ª edição da obra.
Quando Rivail acabou de
editar as perguntas, surgiu um problema: qual seria o título e quem deveria
assinar a obra? Como não se considerava autor, e sim um organizador, deu o nome
óbvio: O Livro dos Espíritos. Mas alguém precisava assiná-lo. “Rivail consultou
os espíritos e uma entidade deu a ele o nome de Allan Kardec, porque esse tinha
sido o nome que ele teve numa vida passada, como um sacerdote druida.” Assim
surgiu o nome do pai do espiritismo.
Em 18 de abril de 1857,
os primeiros exemplares sairiam da Tipografia de Beau, em
Saint-Germain-en-Laye, cidade vizinha a Paris. O livro rapidamente correu o
mundo e criou polêmica, provocando protestos de padres e cientistas céticos,
mas atraindo a atenção de outros médiuns, que entraram em contato com Kardec. O
pai do espiritismo viu que seu trabalho ainda não estava terminado. Eram tantas
novas revelações que ele decidiu revisar mais uma vez e estender o livro. A 2ª
edição, definitiva, contém 1 019 perguntas. A última delas é “O reino do bem
poderá um dia realizar-se na Terra?” Parte da resposta é: “O bem reinará na
Terra quando, entre os espíritos que vêm habitá-la, os bons predominarem sobre
os maus; então eles farão reinar na Terra o amor e a justiça, que são a fonte
do bem e da felicidade”. Estava criado o livro e, com ele, uma nova religião
para os homens.
Fonte direito Autoral: Revista
Superinteressante.
Por Artur Fonseca
Publicado em 30 jun
2008.