BITCOIN DEZ ANOS.
Como nasceu o blockchain e por que ele pode mudar a vida em sociedade.
Inovação tecnológica ficou conhecida com a difusão de moedas virtuais como o bitcoin. Autores contam a história da inovação tecnológica do blockchain, que funciona para armazenar informações e assegurar modelos pouco convencionais de consenso; o dispositivo se tornou conhecido com a difusão das moedas virtuais, como o bitcoin.
["Nebula" (2015-2016), de Terry Winters - Divulgação.
Existem algumas armadilhas intelectuais a que não conseguimos resistir. Uma delas, como explica o primatologista Frans de Waal, é empregar a fórmula “o homem é o único animal que ]”, com o espaço entre os colchetes sendo usado para acomodar nosso especicentrismo favorito. E, de fato, os colchetes já abrigaram hipóteses para todos os gostos. “Usa ferramentas”, “cria artefatos culturais”, “age projetando o futuro”, “compreende o que os outros querem” e “processa sintaxe” são algumas das mais conhecidas. Todas elas acabaram sendo descartadas por evidências empíricas, à medida que os experimentos que acessam e avaliam a inteligência animal ficaram mais sofisticados.
Ainda assim, há inúmeras atividades que parecem irredutivelmente humanas, como conduzir cultos, construir prédios e fazer humor. São instâncias daquilo que o psicólogo Michael Tomasello chama de “intencionalidade conjunta”, a habilidade de compartilhar princípios e escopos para ações coordenadas. Instituições como direitos humanos, pessoas jurídicas e teorias científicas fazem parte dessa categoria de disposições que se tornam relevantes pelo entendimento comum e que, por vezes, envolvem abstrações de outras abstrações.
Um exemplo: cerca de 90% do dinheiro em circulação, essa abstração profunda que aprendemos a tratar com naturalidade, não corresponde sequer a cédulas de papel colorido, mas existe na forma de registros de crédito e débito que trafegam entre sistemas de processamento financeiro.
Isso em nada muda sua capacidade de, pela falta ou pelo excesso, ditar rumos em nossas vidas. Estamos agora diante de uma inovação tecnológica, o blockchain, que funciona ao mesmo tempo como modo distribuído (e resiliente) de armazenar informações e como via para modelos pouco convencionais de consenso e outras interações abstratas. Vale a pena nos debruçarmos mais detidamente sobre ele para compreender como funciona e quais são suas implicações, atuais e potenciais, para a sociedade.
O que vem dando visibilidade ao blockchain é a popularização de moedas virtuais como o bitcoin,
que apresentou a tecnologia para o mundo. O dinheiro é, portanto, um bom ponto para iniciar
nossa investigação.
Em “Um Tratado sobre a Moeda”, o economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946) apresenta algumas das noções que explicam por que seus interlocutores dividiram-se irreconciliavelmente entre os que o amam e os que o odeiam. No segundo volume do trabalho, Keynes descreve o surgimento do dinheiro moderno como um processo de abstração de valor, em que o Estado possui papel fundamental.
Neste ponto, faz uma comparação com o dinheiro de pedra da ilha Rossel, que desde então se tornou conhecido de um punhado de gente no Ocidente. O tal dinheiro de pedra, na realidade, não é da ilha Rossel, mas de uma outra ilha do Pacífico Sul chamada Yap, que fica a cerca de 3.000 km de distância da primeira.
Yap, por sua vez, fica a 450 km de Palau, arquipélago cuja formação rochosa permite a extração de aragonita e calcita, duas formas cristalinas do carbonato de cálcio. Por volta do ano 500 d.C., exploradores nativos de Yap descobriram esses minérios e, maravilhados com sua consistência, passaram a lapidar peças no formato de rosquinhas e as transportaram para casa, para utilizá-las em rituais religiosos.
Não tardou para que essas peças passassem a desempenhar papel análogo ao de nossas pedras preciosas, sendo batizadas de rai. Tal como o da esmeralda e o do diamante, o valor do rai varia de acordo com suas características minerais, integridade e até mesmo história.
Ao contrário do que reza o nosso suposto bom senso universal, as peças raramente mudam de endereço a cada troca de mãos: muitas repousam em uma espécie de banco ao ar livre, enquanto outras seguem espalhadas pela ilha. Isso decorre do tamanho e delicadeza do rai, que pode ter até 3,5 metros de diâmetro e se quebra com facilidade.
A transmissão dos direitos sobre cada rosquinha é determinada por consenso oral entre os moradores da ilha, prática que é reforçada pela recapitulação da história de todas as trocas proprietárias de cada uma delas, para que o direito de um recipiente não seja questionado na transmissão como herança ou em outras situações envolvendo a legitimidade de longo prazo.
É assim que até hoje as rosquinhas servem para transações de valor elevado e socialmente relevantes, em contraste com o dólar americano, que chegou à região durante a Segunda Guerra Mundial e é usado nas transações do dia a dia.
O rai não é o único mecanismo de circulação simbólica entre povos do Pacífico Sul e outras regiões pouco habitadas do planeta. Ao contrário, o século 20 foi pródigo em descobertas aparentadas. O diferencial do rai é dado pela flexibilidade transacional e por seu mecanismo de validação por consenso.
Por exemplo, um nativo cujo filho tenha causado dano a um vizinho pode indenizá-lo pela transmissão dos direitos proprietários sobre uma rosquinha, que adquiriu de uma terceira pessoa e pode estar na propriedade de uma quarta. A rosquinha é tratada como elemento de uma narrativa biográfica amplamente conhecida, que vai incorporando novos capítulos a cada
transação.
Apesar de internamente resiliente, o sistema econômico de Yap é profundamente suscetível ao êxodo populacional.
Isso tanto abre a possibilidade de que transações recentes sejam questionadas por aqueles que não estiveram presentes quanto pode inibir a transmissão dos registros transacionais, enfraquecendo o consenso, tal como vem sendo observado em relação a línguas faladas em regiões isoladas do globo, como a Polinésia e a Amazônia. Sim, arguto leitor, a linguagem também é um sistema de validação por consenso.
Estabelecer consensos independentemente de estruturas centralizadoras e que sejam resistentes a mudanças demográficas é um problema desafiador. Além de perpassar trocas econômicas e a sobrevivência de tradições linguísticas, ele é fundamental para a preservação de qualquer prática não formalizada, em um mundo em que as distâncias são cada vez mais curtas.
Narrativas da floresta, feitiçarias ancestrais, danças do sertão, o problema é sempre o mesmo: os agentes que desenvolvem e mantêm os consensos flexibilizam gradualmente sua unidade de relacionamentos, o que aumenta a entropia da manifestação cultural até os limites de seu desaparecimento.
Esse processo cria demanda por uma autoridade externa que, com sorte, é preenchida por especialistas dispostos a descobrir e registrar os dispositivos fundamentais do código, os quais ficam reduzidos a objetos de estudo. O que era para ser distribuído e originário às vezes é preservado num formato centralizado e acadêmico.
Esse processo não chega a ser afetado pela universalização dos smartphones. Poderíamos imaginar que transações com o rai passassem a ser registradas nos aparelhos dos nativos de Yap, muitos dos quais preferem hoje morar na Austrália e na Nova Zelândia.
Um sujeito vende os direitos proprietários de uma rosquinha para outro, que registra a transação e manda de volta um sinal confirmatório para aquele que lhe passou a propriedade, além de milhares de dólares para sua conta do Paypal; para o resto de Yap, aquela rosquinha continuará pertencendo ao proprietário original que, num ato de má-fé, poderia renegociá-la com um terceiro e assim por diante. No dia em que a coisa estourar, ele pode estar rico, bem longe da ilha.
Variações desse golpe devastam tradições.
Evitar que a rosquinha de pedra possa ser vendida duas vezes é como evitar que uma pessoa ou grupo possa descaracterizar uma língua ancestral pela tentativa maliciosa de introduzir palavras em seu repertório fragilizado. A diferença é que, no primeiro caso, o prejuízo transcende os aspectos culturais, sendo diretamente pessoal e financeiro.
O mesmo problema ressurge quando alguém se propõe a vender a exclusividade sobre fotos tiradas com o seu celular ou sobre um “sticker” que promete ser a nova febre do WhatsApp. Nesses casos emblemáticos, assimetrias de informação trazem a possibilidade de que comportamentos antiéticos causem estragos.
Em 2008, uma pessoa ou grupo sob o pseudônimo de SatoshiNakamoto apresentou uma solução para esse problema das duplicidades, inaugurando assim uma nova era para a transmissão de valor e preservação de identidades. Era o blockchain que nascia.
Seu propósito fundamental é garantir a validade de registros, sem a necessidade de que exista confiança entre todos os agentes envolvidos na operação. Não é tão difícil quando assumimos a existência de algum tipo de autoridade central, capaz de impor regras e padrões a todas as partes. Mas, se quisermos fazê-lo de forma descentralizada, isto é, sem recurso a nenhuma autoridade, como gostam os libertários, a coisa se complica.
O que o blockchain procura fazer é encontrar uma solução para situações em que a divergência de
objetivos entre os agentes compromete a intencionalidade compartilhada. A ideia é que ele seja capaz de resolver problemas ancestrais como o do rai, em que é necessário garantir acesso simultâneo a tudo o que acontece e, a partir daí, gerar consensos tácitos sobre a autenticidade desses eventos ou operações, mas sem que seja preciso engajar ativamente toda a comunidade para chancelar tais entendimentos. Em outras palavras, ele busca o consenso sem que todos tenham que consentir.
Como toda grande invenção, o blockchain mobiliza criações anteriores, que haviam sido desenvolvidas para enfrentar problemas um pouco diferentes. Vale destacar o trabalho de Stuart Haber e Scott Stornetta, funcionários dos Laboratórios Bell que estavam empenhados em encontrar uma fórmula acima de qualquer suspeita para a certificação de documentos digitais.
O ano era 1990. No ano anterior, Tim Berners-Lee havia inventado a World Wide Web, e a dupla intuía, corretamente, que os desafios relativos à preservação da propriedade intelectual e afins se generalizariam.
Foi nesse contexto que Haber e Stornetta conceberam um serviço digital em que cada documento gera uma sequência de letras e números, de tamanho constante, conhecida como hash, que então incorpora o horário de sua criação e, finalmente, o hash do documento anterior.
Essa última etapa é de especial importância, uma vez que força quem quiser alterar maliciosamente um documento a também alterar o anterior (para que as divergências entre os dois registros do seu hash não transpareçam) e assim por diante, até o primeiro documento incluído no serviço. Em 1994, resolveram colocar a ideia em prática comercialmente, por meio de um serviço privado que, além de armazenar os arquivos, gerava e mantinha os hashes, para assegurar que permanecessem invioláveis.
Havia, porém, uma questão em aberto. Como garantir que mesmo os gestores do serviço, isto é, eles próprios, que tinham acesso aos discos rígidos, não seriam capazes de adulterar a cadeia de hashes e, com isso, os documentos? A solução a que chegaram foi a publicação semanal de um hash de todos os hashes da semana na seção de achados e perdidos do jornal The New York Times.
A ideia funciona porque, para se passar despercebido com uma adulteração desse hash, seria preciso sumir com todos os exemplares do jornal da semana anterior e assim por diante, até a primeira publicação. O serviço foi para a frente e durou quase dez anos, gerando o modelo básico para a preservação de registros canônicos de forma não centralizada, no que se convencionou chamar de “block of chain” (bloco de cadeia).
Parece justo, portanto, dizer que Haber e Stornetta tiveram o “insight” original que deu origem ao blockchain. A grande contribuição de Satoshi foi o tratamento que ele deu aos problemas da privacidade e da centralização.
Com efeito, o modelo da dupla de inventores dava-lhes pleno acesso à identidade dos envolvidos, bem como o poder de desligar as máquinas e fechar a empresa. Satoshi queria evitar esse tipo de coisa.
Em sua concepção, o sistema deveria ter natureza distribuída, de modo a evitar que alguém emergisse como autoridade central e ganhasse poderes ditatoriais, e os participantes deveriam ter suas identidades reais preservadas, para garantir o anonimato e evitar possíveis perseguições. Para ele, isso criaria uma alternativa ao domínio dos grandes conglomerados financeiros. Esse não era um objetivo apenas de Satoshi, mas algo perseguido desde o final da década de 1970 por criptógrafos que ficaram conhecidos como cypherpunks. Nick Szabo, um dos expoentes do grupo, foi o verdadeiro criador do modelo conceitual de moeda digital distribuída —o bit gold, que se tornou público em 2005. Essa moeda digital impede operações em duplicidade por meio de um mecanismo de consenso chamado prova de trabalho, que Szabo adaptou do combate a spams.
A prova de trabalho tem por base um sistema de incentivos que mobiliza agentes que participam da rede, conhecidos como mineradores, a juntar várias transações em um bloco e tentar adicionálo à cadeia principal.
Os incentivos nada mais são do que um prêmio em moedas digitais para quem conseguir resolver primeiro um problema matemático trivial mas trabalhoso, cuja solução chancela a validade do bloco criado. O caráter estereotipado do problema significa que quem investe mais em máquinas e eletricidade tem mais chances de sucesso. A conta de luz, vale dizer, pode ficar pesada. Só o bitcoin consome mais energia do que a Suíça e quase tanta quanto a Áustria.
Se, de um lado, isso reforça assimetrias que cypherpunks como Szabo criticam no sistema financeiro tradicional, de outro, assegura que os interessados trabalhem cuidadosamente, reforçando a confiabilidade das transações. Mesmo quem não participou da geração de consenso pode ficar razoavelmente seguro de que a cadeia gerada a partir dos blocos inseridos pelos mineradores só inclui transações válidas.
Na atualidade, mecanismos de consenso menos poluentes e mais rápidos vêm ganhando espaço. Um desses, chamado prova de posse (PoS), substitui os mineradores, com seus pesados investimentos em eletricidade e máquina, por um sorteio no qual a probabilidade de ser escolhido aumenta na proporção da quantidade de moedas digitais sob posse do interessado, que então terá como reforço negativo a chance de perder riqueza se validar transações erroneamente e, como reforço positivo, a quase certeza do prêmio, já que não há competição.
O libra, moeda digital que o Facebook sonha lançar, por exemplo, está brigando para ocupar esse ambiente, com delegados como Visa e Uber, que pagaram US$ 10 milhões cada um pelo direito de validar transações e, depois, ser remunerado por isso.
Preocupadas com esse movimento, economias nacionais como a da China aceleraram projetos de criação de moedas digitais de Banco Central (CBDC), uma das tendências prestes a entrar na pauta das discussões diárias dos economistas ao redor do mundo.
Essas moedas digitais, que podem ou não ter registro em blockchain, adotam o princípio da desintermediação em relação aos bancos de varejo. A possibilidade que se abre com as CBDCs é tanto a de tornar a economia mais eficiente quanto a de controlar mais de perto o comportamento de agentes privados, servindo eventualmente até para perseguir dissidentes.
O uso do blockchain como suporte tecnológico de transações digitais é meramente passivo. Ele atua aqui registrando informações, mais ou menos como um HD ou um banco de memória. Mas também é possível utilizá-lo mais ativamente, aplicando seus princípios à própria porção executável de softwares.
Em 2015 surgiram as primeiras aplicações distribuídas com uso de blockchain. A vantagem é que elas não estão sujeitas aos designíos de um dono nem podem ser tiradas do ar com facilidade por governos ou por quem quer que seja.
Pense, por exemplo, numa rede social cujo código não rode num servidor proprietário, mas se encontre espalhado por milhares de computadores. Como ninguém tem controle absoluto, tais softwares precisam trazer uma série de instruções para que façam o que se espera deles e, ainda mais, para que possam adquirir flexibilidade. Essa lacuna foi preenchida pelos chamados de contratos inteligentes, outra sacada de Nick Szabo (1994), repaginada diversas vezes.
Em sua aparente simplicidade, tais contratos nada mais são do que trechos de código que se autoexecutam, à medida que certas condições são satisfeitas. Na prática, abrem a possibilidade de converter um sem-número de acordos textuais, dependentes da ação humana para que adquiram efeitos práticos em processos computacionais, capazes de impactar a realidade sem a interferência de ninguém ou, como é mais comum, pela interferência pontual de alguém que forneça algumas informações externas.
Pense, por exemplo, num contrato inteligente que paga um vendedor assim que o recebimento do produto é acusado pelos correios, ou em portos onde cargas conferidas por sensores levam à ativação de contratos, que transferem as autorizações necessárias para desembaraçar as mercadorias. Há diversos desenvolvimentos dessa natureza em curso, num movimento que já é chamado de Quarta Revolução Industrial.
A vida em sociedade muda combinando transformações pequenas e contínuas com outras mais agudas e por vezes violentas. Nesse ponto, mimetiza a evolução por seleção natural e outros processos estocásticos.
É como aquelas rampas mal projetadas de estacionamento de shopping que subitamente nos obrigam a alterar a direção para não bater na parede. Não é simples perceber com clareza o tamanho da correção que devemos fazer, mas é fácil notar que, se seguirmos como antes, iremos terminar sobre o guincho.
Hoje, estamos diante de uma dessas inflexões —e o blockchain parece estar envolvido, ao lado da inteligência artificial e das neurociências, entre outros. Ainda é cedo para dimensionar o alcance do primeiro, mas já dá para ter uma ideia dos rumos. Registros distribuídos e imutáveis, contratos inteligentes e moedas digitais, especialmente as de Estado, só tendem ganhar importância. Em paralelo, vai ficando claro que existe espaço para novas abordagens de determinados problemas sociais.
Baixe aqui um aplicativo, exclusivo para Android, que explica em realidade aumentada como funciona a “prova de trabalho”, mecanismo de consenso que serve para o funcionamento de moedas digitais.
Texto:
Álvaro Machado Dias, neurocientista, professor livre docente da Unifesp e especialista em inovação
tecnológica, assina o blog Visões do Futuro no UOL.
Hélio Schwartsman, jornalista e colunista da Folha, foi editor de Opinião e é autor de ‘Pensando
Bem…’.
Júlio Michael Stern é professor titular do Instituto de Matemática e Estatística da USP, pesquisador do CNPq e membro da Academia Brasileira de Filosofia.
Ilustrações de Terry Winters, artista plástico nascido em Nova York, membro da Academia Americana de Artes e Letras. Suas obras estão em exposição no Auroras, em São Paulo, até 31 de janeiro.